José Francisco Monteiro, o Visconde de Tremembé. |
Hoje estamos em clima de crônica policial: falaremos sobre o polêmico crime cometido por José Francisco Monteiro, o Visconde de Tremebé, contra o operário alemão e funcionário da Estação Augusto Kreye. Um caso um tanto absurdo que dividiu a cidade nas primeiras décadas do século passado (aconteceu em janeiro de 1903) e que hoje foi totalmente esquecido (ou quase).
E tudo por causa de uma cabrita. Isso mesmo. Augusto Kreye criava cabras e certo dias elas fugiram de seu sítio e entraram na propriedade do Visconde de Tremembé. O operário alemão procurando sua cabrita a achou mutilada e pediu ao Visconde que o explicasse o que havia acontecido. O Visconde, um homem de 72 anos, mas ainda corpulento, começou a insultá-lo considerando tal fato uma afronta. Kreye decidiu expor o acontecido na imprensa, no jornal Taubateano.
Curioso, tanto barulho por uma cabra, mas temos que se lembrar de que o visconde era uma figura muito... polêmica. Filho da tradicional família dos Monteiros, José Francisco tinha uma história de sucesso como fazendeiro e empreendedor (basta lembrarmos que a primeira companhia a fornecer iluminação pública era dele) e um temperamento forte. Monteiro Lobato, seu neto, embora nunca tenha admitido abertamente, o via como uma figura tirânica, tanto que somente após a sua morte pode se dedicar ás letras em São Paulo ao invés de ser promotor ou fazendeiro para administrar a "herança virtuosa" da família.
José Francisco, assim como seus irmãos, gozava de muito prestígio: além de mestre da Loja Maçônica local, era membro da tradicionalíssima Ordem Terceira de S.Francisco (catolicíssima aliás) e obtivera seu título de nobreza do imperador por mandar a metade de seus escravos para lutar na Guerra do Paraguai como "voluntários". Sem contar que fora o chefe do Partido Liberal na cidade por quase todo o Império.
Quem era Augusto Kreye para peitar um pilar da comunidade? Nem brasileiro era! Kreye era alemão, vindo de Hanôver, e já tinha experiência como operário no Velho Mundo. Chegou ao Brasil pelo Porto de Santos, como muitos outros imigrantes estrangeiros, e viveu por um tempo na capital paulista procurando emprego. Não sei dizer quando chegou á Taubaté, mas logo ficou amigo de Eugênio Guisard, Astério Braga, Roberto Bretherick (que era dinarmaquês). Esses nomes já eram conhecidos de todos como aqueles homens que eram mais ligados aos operários, seja por sua origem ou por sua ideologia - Eugênio, por exemplo, era irmão do aclamado industrial Félix Guisard, no entanto tinha simpatia pelo socialismo e considerava-se, segundo seu filho Oswaldo B. Guisard, do "ramo pobre da família".
Sabemos que Kreye, com 66 anos de idade, arrumou um emprego como funcionário da Estação da Central do Brasil na cidade e junto com seus amigos fundou uma nova Loja Maçônica Triunfo, Honra e Verdade, já que a local estava, segundo eles, nas mãos dos poderosos e "falsos maçons". Além disso, Kreye também participou do Centro dos Operários Livres de Eugênio, fundado justamente para ir de encontro ao Centro dos Operários Católicos de nosso conhecido monsenhor Nascimento Castro.
A disputa ocorria primeiramente na imprensa, por meio de notas e provocações entre ambos. A imprensa noticiava aquilo como o sinal dos novos tempos ou como o fim da picada. Imagino o burburinho que deve ter corrido na cidade. Todos deviam falar nisso. Seria o embate entre o tradicional e poderoso fazendeiro e o pobre e engajado operário ou entre o mais puro sangue da nossa terra contra um zé ninguém de fora. As pessoas deviam tomar partido ou simplesmente preferir não comentar.
A polêmica saiu da imprensa a partir de 26 de janeiro de 1903, quando Kreye e o Visconde se encontraram no centro da cidade. O Visconde pediu que ele se desculpasse e o alemão disse que não o faria. Furioso, o fazendeiro pegou sua garrucha e deu um tiro no seu desafeto. Felizmente, a bala acertou o chapéu do homem e ninguém se feriu. No dia seguinte, Kreye abria um novo processo contra o visconde por tentativa de assassinato.
A polêmica saiu da imprensa a partir de 26 de janeiro de 1903, quando Kreye e o Visconde se encontraram no centro da cidade. O Visconde pediu que ele se desculpasse e o alemão disse que não o faria. Furioso, o fazendeiro pegou sua garrucha e deu um tiro no seu desafeto. Felizmente, a bala acertou o chapéu do homem e ninguém se feriu. No dia seguinte, Kreye abria um novo processo contra o visconde por tentativa de assassinato.
Do lado do visconde, um batalhão de advogados se prontificou a ajudá-lo, dentre eles seu sobrinho Augusto César Monteiro e nomes como Euzébio Câmara Leal e seu irmão Gastão. Os irmãos Câmara Leal eram conhecidos por seu forte apego ao monarquismo, Euzébio, por exemplo, disse que a frustração de sua vida fora a Proclamação da República. Assim como eles, ao redor do Visconde passou a orbitar todos os membros da facção conservadora da cidade: seja ela de monarquistas, líderes católicos, republicanos desiludidos, etc.
E do lado de Kreye? A pergunta ficava: quem iria defendê-lo, ou melhor, quem teria coragem? Eugênio Guisard, com o apoio contido do irmão industrial, chamou o advogado paulistano Benjamin Mota. Para quem estuda o movimento operário, Mota é uma figurinha carimbada: maçon, anticlerical e anarquista, fundou inúmeros jornais com essas mesmas características na capital. Mota ficou a par dos acontecimentos e decidiu ajudar Kreye.
Exemplar do jornal A Verdade, 21/09/1907. Fonte: CDPH |
O embate acontecia diariamente, mas não no tribunal e sim na imprensa. Os jornais ligados á oposição (no momento, os conservadores), como O Norte e A Verdade, criticavam o Diretório Republicano (controlado pelo setor mais liberal, onde constam o coronel José Benedicto de Mattos e Félix Guisard) e exaltavam a figura e os trabalhos do Visconde de Tremembé. Enquanto isso, os jornais da situação, como O Taubateano, atacavam os "decrépitos e truculentos nobres locais" e clamavam por justiça.
Um caso bizarro tornara-se centro das disputas políticas da cidade. A questão aqui era se o poder e prestígio da monarquia e do café podia vencer o que parecia ser esses representantes de um novo mundo que surgia, se a modernidade ganharia da tradição. Essencialmente, esses eram os termos da questão. No entanto, segundo Soto, as diferenças entre essas facções eram apenas superficiais (questões financeiras e administrativas) e não ideológicas. O que esse crime e sua repercussão revela, para a historiadora, é essa trama de tensões e violências que vivem no subterrâneo da socidade taubateana da época, que se gabava de ser "pacífica e dócil".
Bem, o final do caso do crime do visconde eu conto para vocês, mas em outra hora. Não se zanguem comigo, apenas estou colocando aquele clima de suspense no ar. Não foi eu que inventei isso, é o principal ingrediente das crônicas policiais depois do sensacionalismo, é claro.
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