Victor Leonardi é um antropólogo brasileiro, mas talvez essa seja uma definição muito limitada para esse grande pensador que transita muito bem entre sociologia, história e literatura. Além disso, sua preocupação em discutir nossos problemas também faz de seus ensaios sempre uma boa leitura. Suas reflexões em Entre Árvores e Esquecimentos: História Social nos sertões do Brasil (1996) foram extremamente produtivas para mim.
O livro é a reunião de ensaios bem concisos e conectados sobre a questão indígena. Basicamente, Leonardi está se questionando porque nunca foi dada a devida atenção ao indígena? Por quê em nossas Ciências Sociais há uma enorme lacuna quando se fala no índio que só vem sido preenchida nos últimos anos por nossos antropólogos? No decorrer do livro ele nos apresentará um rico painel da história nacional e da história indígena e sua hipótese para tais questionamentos, os quais nos determos mais tarde.
Por enquanto, nos deteremos no primeiro capítulo, cujo título é Sobre a bestialidade e a desrazão, e outros argumentos. Em cima da constatação de um pesquisador sobre a visão do índio em Portugal e Brasil o autor nos mostrará como o índio foi visto pelos cronistas e, posteriormente, pelos historiadores nacionais. A conclusão a que chegou Georg Thomas depois de pesquisar e muito documentos portugueses foi de que em Portugal e Brasil havia uma imagem pejorativa do indígena, enquanto no resto da Europa, por conta dos relatos de Colombo e Vespúcio, havia uma imagem mais positiva do indígena, que culminará no mito do bom selvagem.
Ora, essa visão pode ser encontrada em inúmeros relatos de viajantes e cronistas. A maioria os chama de bestas, bárbaros, viciosos, indecorosos, pelos mais variados motivos (organização social "primitiva", hábitos bélicos, andar nu, etc.) Vamos agora aos historiadores: Francisco Adolfo Varnhagen, intimamente ligado ao Estado, defende a escravização e o massacre dos índios como única maneira possível de civilizar esse povo e criarmos uma nação decente. Emblemático ouvirmos isso do "pai da História do Brasil". Os historiadores que viriam a seguir não fugiriam desse menosprezo pelo indígena: Rocha Pombo acredita que era a única maneira possível de colonizar o país, Afonso Taunay relativiza a violência em prol da "ação cívica" dos bandeirantes, Serafim Leite pensa que o trabalho missionário e a colonização tinham de ser intensos para atingir essa massa desvirtuada, Oliveira Viana acha que era melhor exterminar o índio do que vivermos cercados por mestiços que degeneram esse país com sua mentalidade preguiçosa e apática. Claro que existem as exceções, como Fernão Cardim entre os cronistas e Capistrano de Abreu entre os historiadores.
Capistrano de Abreu |
Francisco Adolfo Varnhagen |
Leonardi lembra que os primeiros historiadores do século XX não podiam reclamar dizendo que havia pouco material sobre os índios para criarem tais idéias sobre eles: os primeiros trabalhos dedicados especialmente aos indígenas foram feitos nos anos finais do século XIX por Karl von Martius, Karl von den Steinen, dentre outros naturalistas estrangeiros que percorreram o sertão e a selva amazônica. Assim sendo, nossos historiadores não olharam para o índio com cuidado porque simplesmente não queriam.
Por que nossa historiografia é tão preconceituosa para com o elemento indígena? Seria porque ela é fortemente positivista? Não, afinal ser positivista não significava detestar o índio, basta nos lembrarmos do Marechal Candido Rondon que era positivista de carteirinha. Além disso, esse preconceito era anterior ao positivismo - o vemos nos cronistas, se lembra? A historiografia brasileira nos seus primórdios era essencialmente eclética, como o era a filosofia nacional. A única coisa em comum era esse desprezo para com o indígena que nada mais era que uma justificativa para os atos nefastos dos colonizadores. O pretexto que eles utilizavam, quando não mencionavam a religião, era justamente o progresso. O progresso econômico só seria alcançado com a domesticação ou destruição desse elemento. Assim a guerra era justificada. No século XIX, já independente, o Brasil agora muda de tática: não há mais uma política oficial de "domesticação", mas apenas a marginalização, o esquecimento. A tática muda, mas a justificativa permanece: o progresso.
O mais interessante desse processo é que essa história oficialista será reproduzida nas escolas e universidades formando assim mais e mais pessoas que pensavam o índio como um empecilho ao progresso. Não podemos nos esquecer também da política indigenista: quando ela finalmente se tornou real se direcionava apenas para integrar o índio ao país e não respeitar sua alteridade. O índio devia se integrar, principalmente através do trabalho e de seu território.
Assim, chegamos aonde Leonardi anseiava: esse tema não vem sido debatido desde então, melhor, não vem sido debatido amplamente. Seja porque essa visão do indígena ainda permaneça ou porque os intelectuais se afastaram um pouco dessa questão. Os historiadores, por exemplo, parecem ter se afastado totalmente, deixando o assunto para os antropólogos. A antropologia realmente deu uma nova tônica para o debate, demonstrando a especificidade de cada etnia, mas esse debate precisa ser muito mais amplo. A história ainda tem muito o que acrescentar sobre esse processo de conflito interétnico (índiox branco) que vem acontecendo á mais de quinhentos anos nessas terras.
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