sábado, 8 de março de 2014

Essencial e genial


Se você não sabe bolhufas sobre o cinema brasileiro, com certeza deve associar o nome de Eduardo Coutinho mais a tragédia que ceifou sua vida que á sua obra inovadora. Em janeiro desse ano, como sabemos, seu filho que sofre de distúrbios psicológicos o matou a facada em sua casa no centro do Rio de Janeiro. Me espantei com a notícia. Tomei contato com ela pela internet e pensei ser mais uma brincadeira de mau gosto, mas não, foi bem real.
Ele já tinha mais de 80 anos e algumas doenças pulmonares por conta de seu inseparável cigarro. Mas mesmo assim ninguém esperava que ele partisse assim. Em seu enterro compareceram várias pessoas, amigos como Ferreira Gullar e desconhecidos que apreciavam sua obra.
Cabra Marcado para Morrer é sempre mencionado como um divisor de águas no cinema brasileiro. Por quê? O filme tem um novo modo de fazer documentários. Não mais aquele modelo que Jean-Claude Bernardet chama de sociológico por vir carregado de ideias centrais onde os depoimentos e imagens captados apenas são ilustrativos. Nesse filmem as entrevistas constroem a narrativa e embora o tema seja a luta camponesa no Nordeste há espaço para muito mais.
Na verdade, se trata de um filme sobre outro filme. Sobre um que Coutinho pretendia fazer em 1964 sobre a morte de um agricultor ligado ás Ligas Camponesas no Nordeste, mas que com  o golpe foi engavetado. Há portanto uma metalinguagem aqui que não fica somente no tema, mas na própria abordagem aos entrevistados. Coutinho e sua equipe aparecem, interagem com os depoentes de diversas formas fora a entrevista. Eles são protagonistas também dessa busca pelos antigos atores do filme perdido. Atores esses que eram membros da comunidade e líderes camponeses.
Em segundo lugar, as consequências da ditadura para o campo não eram tão bem exploradas pelos documentaristas e mesmo pesquisadores acadêmicos. Ao reconstituir a história de todos aqueles que participaram de seu antigo projeto ele evidencia o peso do regime na dissolução de comunidades e de famílias, influenciando mesmo as migrações. A história que começa no interior de Pernambuco passa por diversas localidades do Nordeste e até pelo subúrbio carioca comprovando que talvez a brutalidade da repressão no campo foi um motivo tão forte para o êxodo rural quanto as secas.
Para você que cursa História, meu amigo, esse filme, bem como toda obra de Coutinho, são indispensáveis. O cineasta carioca tinha um nítido interesse pelo outro, pela reconstituição de experiências humanas através de evidências (sendo os depoimentos a maior delas). Interesse esse que os historiadores compartilham. Sua obra oferece um importante contraponto ás consagradas narrativas sobre a história recente do Brasil por partir do ponto de vista das pessoas humildes e carentes que povoam o país. Do golpe de 1964 á eleição de Lula em 2003, tudo isso e muito mais pode ser encontrado nas produções desse artista essencial e genial.

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