sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Pensando e repensando Javé II

Por abordar a questão da narrativa, como vimos no post anterior, Narradores de Javé pode levantar discussões interessantes á todo tipo de gênero que utilize esse recurso. Desde o conto popular até o cinema, da memória á história.
Todo causo tem um início, um meio e um fim, mas a forma como ele é contado nunca é mesma, pois o narrador nunca é o mesmo. No filme, vemos o caso da história da fundação de Javé. Toda narrativa sobre a fundação começa do mesmo ponto: uma pequena expedição parte em busca de uma terra para viver e acaba encontrando o vale do Javé. O que muda é quem chefiou essa expedição (se Indalécio, Indaléo ou Maria Dina), como ele achou essa terra (se numa batalha, se numa profecia, etc.) e por aí vai.
O estilo de contar uma história ajuda a transformar as narrativas em algo muito plural, mas a origem da história também. Pode ser que Vicentino, por exemplo, conte a história da fundação de Javé a partir do que lhe foi contado por seus pais, sempre reiterando o seu vínculo familiar com o nobre e valente fundador da cidade, e este acrescente alguns detalhes a mais.

Vou dar aqui outro exemplo: meu avô gostava de contar uma das tantas histórias que tinha ouvido sobre Lampião na qual o cangaceiro teria chegado numa cidade do interior do nordeste á procura de um lugar para comer e encontrou a pensão de uma senhora que, ávida para receber a recompensa pela sua cabeça, decidiu envenenar a sopa do rei do cangaço. Lampião, sagaz, sempre comia com uma colher de prata. Assim que colocou a colher na sopa, ela mudou de cor. O cangaceiro sabendo que a sopa estava envenenada teria pedido para a velha tomar um gole, por parecer muita cansada. A senhora teria tomado, literalmente, do próprio veneno e morreu ali mesmo. Fiquei sabendo de outra versão onde o cangaceiro, pintado como homem esperto, mas cruel e desumano, teria fuzilado a senhora assim que viu a cor da colher, que teria tentando matá-lo porque este teria matado seu filho quando entrou na cidade atirando para todos os lados.
É uma narrativa: o causo tem o começo, meio e fim. Em todos alguém tenta envenenar Lampião e acaba morto, só que em um o caráter do cangaceiro é mais nobre e noutro mais desumano. Isso reflete a própria ambiguidade de como Lampião é visto pela história e pela opinião pública: ora herói, ora vilão.
Resumindo, a narrativa popular é tão diversa porque está condicionada pela sua origem social e pela subjetividade do seu narrador. A mesma coisa vale para o historiador ou para o cineasta. A personalidade influi na narrativa cinematográfica, isso todos sabemos - tanto que sobre esse respeito existe até uma certa teoria dos autores.

Essa teoria, criada por críticos franceses, alega que mesmo o cineasta sendo limitado pelos poucos recurso e pelas restrições dos estúdios e produtores, em tudo que faz deixa uma marca da sua personalidade. Mesmo fazendo um filme comercial, o cineasta deixa escapar ali e acolá sua originalidade. Sabemos pelos ângulos da câmara, o foco em determinados personagens e a trilha sonora, por exemplo, quando vemos um filme de Sérgio Leone, o reinventor do faroeste. As imagens panorâmicas, os closes sobre os rostos e olhos sujos dos caubóis e a música grandiosa do maestro Ennio Morricone denunciaria fácil o autor do filme. Leone era um grande apreciador de ópera e muitos dizem que ele levou esse estilo para os faroestes. Seus filmes iniciam de forma minimalista para se tornarem, ao longo do enredo, algo épico. Ora, é um estilo de narrativa.
E na história? A escolha do tema que o historiador se propôe investigar é algo íntimo: ele procura respostas para perguntas, no presente, que lhe angustiem. É preciso afinidade com um tema para se debruçar sobre ele. As inquietações são pessoais, portanto, e a forma como elas são tratadas na hora de expor os resultados da pesquisa também o são.

O historiador suíço Jacob Buckhardt, por exemplo, elegeu como seu tema o Renascimento italiano e apresenta sua pesquisa como se fosse um mestre de cerimônias, abordando a partir de suas obras de arte preferidas determinados períodos e personagens do período. Segundo o historiador alemão Peter Gay que analisou o estilo de Buckhardt, isso demonstra muito da sua personalidade: Buckhardt era um homem conservador que se incomodava com os avanços do mundo moderno (viveu no século XIX) e que teria escolhido o Renascimento como tema, pois este período lhe parecia muito exótico e talvez pudesse explicar como a Humanidade teria chegado á esses novos e caóticos tempos.Buckhardt enxergava o Renascimento como uma época de excessos, algo do qual não gostava tanto. Ainda assim escolheu esse período para investigar por causa do exotismo e da excentricidade que parecia exalar. O modo como aborda o período, como um mestre-de-cerimônias, demonstra a sua austeridade, sua formalidade.
Temos a narrativa mutante do causo, a narrativa épica de Leone e a narrativa formal de Buckhardt nesse texto. Todas demonstram a diversidade desses recursos, diversidade essa que depende dos meios de se contar uma história e da personalidade de quem conta.

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