quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Cultura, industrialização e alguns gatos

Robert Darnton dizia que o passado é uma terra estrangeira. Quando assistimos trabalhadores matando gatos e morrendo de rir com isso, na passagem do século XVIII para o XIX, temos de concordar com ele. O que há de tão engraçado em matar gatos? A resposta só pode estar no passado, na terra estrangeira em que eles viveram. Esse estranho fato chamou a atenção do pesquisador norte-americano que tentando descobrir seu significado acabou fazendo uma história cultural dos primórdios da industrialização na França.

Robert Darnton
Quem relata o massacre de gatos é um tipógrafo que em um pequeno caderno conta como foi o começo de sua carreira profissional. Na época, esse tipógrafo trabalhava numa oficina e partilhava com um amigo muito zombeteiro um quarto. Ao contrário do que a historiografia tradicional pensa, o período da pré-industrialização não foi assim tão pacífico quanto se imaginava: o tipógrafo nos conta que a vida de aprendiz (iniciante no ofício) era dura, com péssimas condições de trabalho, de higiene e de moradia. Além disso, havia o ódio contra o patrão. Enquanto os aprendizes quase se matavam de trabalhar, o dono da oficina esbanjava dinheiro e tinha mais cuidado com os inúmeros gatos que sua mulher criava do que com seus trabalhadores.

O historiador acredita que na época já havia uma certa consciência de classe: os trabalhadores, por causa de sua péssimas condições de trabalho, se uniam, mas ainda não partiam para a luta de classes explícita. A prova de que eram unidos está nas inúmeras agremiações que os tipógrafos tinham, quase sociedades secretas destinadas aos melhores e mais confiáveis trabalhadores. Outra prova pode ser encontrada nos rituais por que os aprendizes tinham que passar para serem considerados verdadeiros tipógrafos.
Mas vamos ao caso dos gatos: o amigo gozador do autor do caderno de memórias resolve empregar uma peça no patrão. Durante a noite vai até a sua casa e fica miando. A sua intenção é não deixar o burguês não dormir direito. Mas acaba tendo um efeito colateral: por causa dos miados insistentes, o patrão acredita que os gatos estão endemoniados e no dia seguinte pede que os seus empregados se livrem deles, menos da gata cinza (a favorita de sua mulher). É justamente a gata cinza o alvo de toda fúria: ela é enforcada. Os demais foram mortos á pauladas, enquanto todos riam.

Darnton entra no folclore da época para tentar entender o significado da figura do gato e descobre que ele poderia simbolizar desde a ligação com a feitiçaria, a sensualidade desenfreada e a identificação com o dono. Portanto, quando enforcaram a gata cinza poderia estar dizendo que sua dona era uma bruxa ou uma adúltera, ou podiam estar fazendo o que queriam fazer com seus donos - enforcá-los.
O massacre de gatos em sim demonstra que no início da industrialização na Franca existia sim uma luta de classes, mas através do simbolos. Os trabalhadores usavam dos elementos de sua cultura e das mentalidades do período para poder atingir o patrão, para ridicularizá-lo, como fizeram os tipógrafos com os gatos do dono da oficina. Era uma luta de classes onde o humor e a cultura andavam de mãos dadas.

3 comentários:

  1. Isso não é tão bom, faziam guerras simbólicas, se eles tinham, e realmente tinham problemas os trabalhadores, fizessem uma luta aberta e objetiva, sem simbolismo nem nada, há muito mais tempo poderia haver uma revolta aberta à explorações dos trabalhadores. Se unissem as forças das massas proletárias poderia dar certo.

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  2. Acontece que nos primeiros tempos da industrialização, as categorias eram muito dispersas. Eles não viam, por exemplo, que os tipógrafos e operários de manufaturas têxteis tinham quase os mesmos problemas. Além disso, a industrialização não aconteceu de uma forma uniforme. Em alguns locais ela foi mais forte, em outros não. Isso impedia que uma categoria de trabalhadores ou mesmo todos eles se unissem e reivindicassem alguma coisa.
    Os trabalhadores não surgiram de uma hora pra outra. Eles foram se remodelando com o tempo. Não podemos esperar que assim que surge a indústria eles já estejam todos fortes, unidos e conscientes de todos os caminhos necessários para ganharem seus direitos. Isso foi uma construção. Levou tempo para eles atingirem essa consciência. A guerra simbólica foi um dos primeiros passos deles.

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