terça-feira, 12 de julho de 2011

"Sejam realistas, exijam o impossível!"


Estudantes de Paris lutam contra a polícia em maio de 1968.

Herbert Marcuse é considerado um dos filósofos da revolução. Durante os movimentos de maio de 1968 na França, quando estudantes começaram a fazer barreiras contra a política e entoar a frase que hoje virou lugar-comum "é proibido proibir", alguns filósofos viram isso tudo com certa desconfiança. Theodor Adorno, por exemplo, acreditava que o radicalismo dos estudantes, caso conseguissem atingir seus objetivos, poderia instaurar um novo regime totalitário. Marcuse, contudo, deu total apoio aos estudantes. Por quê?
A resposta está em seu livro Eros e Revolução. Marcuse era um pesquisador da obra de Freud. Por ser muito interessado na psicanálise e ser marxista ele costuma ser associado com os pensadores da Escola de Frankfurt, que tinham um perfil parecido. Marcuse achava interessante as idéias expostas por Freud no livro O Mal-Estar da Civilização. Nele o pai da psicanálise diz que a civilização foi criada para o ser humano controlar seus instintos naturais. O homem é guiado por instintos e desejos, apesar de acreditar ser puramente racional. Para viver em sociedade ele tem que fazer algumas concessões, afinal muitos desejos e instintos esbarram nos interesses dos outros. A civilização assim tem o papel de controlar o homem. Ela priva um pouco sua liberdade em troca da segurança de viver em comunidade.
Sigmund Freud por André Toma.
Para Freud, a razão das neuroses que ele tanto analisou está nessa repressão que a sociedade faz de nossos desejos. A repressão faz com que os instintos se tornem algo doentio, que fica escondido em nós, mas que justamente por isso pode aflorar a qualquer hora dos meios mais variados. Afinal, não podemos sumir com nossos instintos, eles continuam conosco, só que escondidos de todos. A tentativa de acabar com eles pode gerar algo muito pior. Como um animal quando está acuado, o instinto pode voltar com força total. Adorno acreditava que a crença na razão e no fim dos instintos fez com que a irracionalidade do fascismo surgisse.
Herbert Marcuse
Marcuse concorda com Freud e acredita que nos tempos de então o capitalismo tinha exagerado esse ímpeto "civilizador". Esse ímpeto, criado para ser uma forma de garantia da vida em comunidade, tinha se transformado em instrumento de controle, de dominação. Tudo agora era regido pela racionalidade e pelo lucro. Você faz não o que você quer, mas o que mandam. Você acredita estar feliz porque está numa casa ultra-moderna e enorme, cheio de dinheiro e com lindas mulheres porque existe um padrão de felicidade imposto pela sociedade que diz justamente isso. Você não ouve mais seus instintos, mas os padrões de conduta da sociedade, que são tão convicentes que nem parecem ser regras. Uma vida em que você vive para satisfazer outro e não a si mesmo, não é uma vida, é alienação. Viver significa desfrutar de sua liberdade e o que teríamos nessa sociedade é a falsa impressão de sermos livres. Nossos grilhões são imaginários, mas estão lá.

Eros e Psiquê, Jacques Louis David.
Na psicanálise, acredita-se que todo ser humano tenha dois impulsos: o impulso pela vida e o impulso pela morte. O primeiro é o que nos faz sobreviver, é o que preservar nosso organismo. O segundo é o que nos faz aceitar a morte, é nosso instinto auto-destrutivo. Existe uma nomenclatura para os dois: Eros e Tanatos. Eros, na tradição greco-romana, era uma entidade que distribuía o amor entre os mortais com flechas (hoje ele se tornou a figura do Cupido), enquanto Tanatos era a representação da morte, levando as almas para o barqueiro Caronte (depois ela se transformara na figura do Ceifador). Cada indivíduo partilha com a sociedade essa disputa diária entre Eros e Tanatos. Mas parece que na sociedade tecnológica (como Marcuse a chamava) Tanatos está ganhando porque ele usa uma máscara de Eros. A falsa impressão de que estamos vivendo, de que somos livres, nos faz continuar alienados, agindo simplesmente como engrenagens.
Nesse livro, contudo, Marcuse acredita que a saída para esse sistema vem dele próprio: chega um momento em que a dominação e a repressão é tão exagerada que o impulso de vida (Eros) estoura como estourou o impulso de morte (Tanatos) com o fascismo. Essa explosão pode ser chamada também de revolução. Seria um momento em que esse sistema seria atacado e outro construído em seu lugar.
As revoltas dos jovens naqueles anos é parte desse impulso. É o começo da explosão. O fato das manifestações terem surgido rapidamente e se expandido pela Europa na mesma época deu a certeza á Marcuse de que era o começo de uma nova era. Muitos manifestantes chegaram a afirmar que se inspiraram no livro de 1964 de Marcuse, A Ideologia da Sociedade Industrial, onde ele introduz estas idéias. Para o filósofo alemão, o protesto do jovem continuará porque é uma necessidade biológica. Por natureza, a juventude está na primeira linha dos que vivem e lutam contra uma civilização que se esforça para encurtar o atalho para a morte.
Marcuse discursando para o movimento estudantil alemão em 1969.
Marcuse participou do movimento com palestras, artigos, acompanhando os protestos. Sua intenção era ajuda a formar uma nova sociedade pautada pela vida e não pela dominação que levaria á mortificação das pessoas ainda em vida. Ele reconhecia que muitos movimentos ainda não sabiam exatamente o que estava defendendo, surgiam simplesmente por reação ao conservadorismo da sociedade. Mas pensava que o debate e a crítica á racionalidade ajudariam a conscientizar a maior parte desses movimentos.

Cartaz de Maio de 1968: "A luta continua".
Muitos que viveram aquele momento declaram que se frustraram com o que aconteceu a seguir: a volta do conservadorismo. Na realidade, o mundo se radicalizou, seja na direita como na esquerda. Tivemos os anos de chumbo no Brasil com a ditadura militar, a guerra do Vietnã estraçalhou a juventude dos EUA, os massacres promovidos pela Revolução Cultural Chinesa e a repressão violenta á Primavera de Praga. 1968 parecia, como muitos dizem, um ano em que tudo poderia mudar. Mudou realmente, mas não para aquilo que se esperava. Muitos associam o fim da guerra fria e a apatia política de nossos dias com a frustração do movimento jovem daquela época.

James Dean em cena de Juventude Transviada (no original Rebel Without Cause): ícone de uma geração.
Hoje a figura do jovem é glorificada. Parece que os anos 60 abriram os olhos do capitalismo também para esse segmento da sociedade. O jovem é visto como aquele que aproveita a vida, mas existe uma cartilha para o que se acredita ser "aproveitar a vida". Eis aí novamente a falsa impressão de liberdade. O rebelde sem causa é uma figura que se tornou padrão e já existe toda uma indústria ao redor dele: desde camisetas, músicas á eventos ditos marginais e etc. A internet é outra ferramente que nos ilude com sua promessa de liberdade sem fronteiras ao esquecer que ela também lucra e domina. A revolução da juventude parece ter sido domada.
Contudo, ultimamente muitos tem se aproveitado dos instrumentos dessa sociedade para subvertê-los. Usá-los contra ela. É o caso de passeatas organizadas pelas mídias sociais desse lado do oceano e do outro, sendo que daquele lado alguns ditadores e presidentes corruptos tem caído com a ajuda delas. Ou mesmo do grupo de hackers chamados Anonymous, que inspirados na história V de Vingança, tem promovido ataques á sites do governo.  São movimentos que procuram ir um pouco além. Há a falta contudo de movimentos que sejam abrangentes. O indiviualismo impede algo do tipo. Quando há movimentos são fracionados, representando a categoria X ou a categoria Y. Falta ainda uma visão do todo e uma organização mais articulada e coesa. Mesmo assim, nos últimos tempos os movimentos tem ensaiado ações mais ambiciosas, como as dos jovens de 1968. Ainda não se sabe o que surgirá: se uma nova sociedade, como quis Marcuse, ou mais uma frustração, como testemunhou a geração da era de Aquárius.

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