terça-feira, 12 de julho de 2011

"Notícia de Falecimento: morreram todos os heróis"

Cena de O Pagador de Promessas (1962).
Um prefeito que tenta inaugurar um cemitério, mas é surpreendido com a falta da mortes em sua cidade. Um homem humilde é impedido de pagar uma promessa em uma igreja para que curasse seu único sustento (um burro) só porque fizera a promessa em um terreiro de candomblé. Duas situações bizarras, mas que revelam aspectos pouco louváveis de nosso país, como a corrupção ou a intolerância religiosa. O que tem em comum? O homem que as criou: o dramaturgo baiano Dias Gomes (1922-1999).

Dias Gomes
Dias Gomes era um dos muitos artistas brasileiros que conseguiam unir uma linguagem popular e eclética com conteúdos políticos. O Bem Amado, sua obra mais famosa, por exemplo é uma crítica á corrupção e á demagogia de nossos políticos. A plataforma de Odorico Paraguaçu é a construção de um cemitério para Sucupira. A ausência de mortes revela a incompetência de sua administração. Quantos políticos não se apoiamem obras faraônicas, ontem e hoje? O Pagador de Promessas, por sua vez, lembra nosso sincretismo religioso e a desigualdade social. Zé do Burro apenas quer pagar sua promessa, mas é barrado por um padre que não reconhece a validade de suas intenções, simbolizando a posição conservadora da Igreja diante do povo. O caso acaba virando espetáculo para os transeuntes e negócio para alguns comerciantes e aproveitadores.

Mas hoje vamos falar de outra peça sua: O Berço do Herói. Escrita em 1965 e censurada no dia de sua estréia pelo novo regime que se instalara no Brasil um ano antes. O motivo? A peça fazia troça com o brio militar. A história era simples: um expedicionário da FEB chamado Cabo Jorge é tido como um dos heróis da tomada de Monte Castelo na Itália e em cima dessa sua fama de herói sua cidade-natal constrói toda uma estrutura que se aproveita disso: desde o cacique local (Chico Manga), o prefeito, o vigário e até a dona do bordel. A cidade, inclusive, passa a se chamar Cabo Jorge e ostenta vários monumentos em sua honra. Acontece que Cabo Jorge não morreu, ele se acovardou e foi preso. Com a anistia italiana, ele volta á sua cidade natal e eis que ameaça todo o negócio construído em torno de sua fama de herói.
O que irritou os militares foi Dias Gomes admitir que um expedicionário da FEB, tido com o protótipo do herói brasileiro e do militar, poderia se acovardar. Além disso, na história há um general que apóia a conspiração de Chico Manga para sumir com Cabo Jorge e voltar ao que era antes.
Sinhozinho Malta (Lima Duarte), Viúva Porcina (Regina Duarte), Roque Santeiro (José Wilker).
Você deve estar reconhecendo a história de algum lugar, não é? Acontece que após a censura á peça e ao seu trabalho como novelista na Globo, Dias Gomes adaptou a história para a televisão e lhe deu um outro nome: Roque Santeiro. Assim, Cabo Jorge vira Roque Santeiro, Antonieta vira Viúva Porcina, Chico Manga vira Sinhozinho Malta. A novela também foi censurada e só foi exibida definitivamente em 1985, com os últimos momentos da ditadura militar.

Che Guevara por Andy Warhol.
O tema da obra é muito claro e no livro de 1965 fica mais explícito ainda com esse título estampado na contracapa: Do Heroísmo como Objeto de Comércio. Dias Gomes está criticando o aproveitamento dos mitos não só na política, como vinha fazendo o regime de então á promover eventos cívicos em homenagem aos pracinhas, á Tiradentes, etc, mas também na economia. Afinal, o capitalismo também lucra com os heróis. Como Dias Gomes diz, Cabo Jorge (o cabo), passa a ser a principal fonte de renda de Cabo Jorge (a cidade). Se formos trazer essa questão para nossa época, podemos pensar na figura de Che Guevara por exemplo. Mesmo sendo um crítico radical do capitalismo, suas camisas e tudo que fala a seu respeito dá mais lucro que a economia de Cuba.
A peça é subversiva por isso. Porque ela pretende questionar o mito do herói. Ela enxerga o herói como instrumento de alienação e de consumo. Dias Gomes era comunista, mas não simpatizava muito com a direção stalinista dos partidos de esquerda da época. Era menos radical e mais ácido. Sua crítica aos heróis pode também ser estendida aos heróis da esquerda. Afinal, o mito do herói pode ser aproveitado por qualquer ideologia: seja ela conservadora ou revolucionária. Cabe aqui, contudo, uma crítica ao dramaturgo baiano: uma de sua peças exaltava Getúlio Vargas como um herói popular, não reconhecendo dessa maneira o culto ao líder trabalhista como também um instrumento de poder e de comércio.
Luís "Lula" Inácio da Silva.
Afinal, da década de 1950, quem quisesse contar com o apoio do povo era só dizer que era afilhado político de Vargas. Temos assim o herói como plataforma política. Nas últimas eleições essa prática também foi muito utilizada: parece que dizer ser amigo de Lula ou ter lutado ao seu lado seria garantia de votos.
O fato é que não podemos escapar dos heróis. Apesar de vivermos numa sociedade moderna, complexa, ainda não nos libertamos dos mitos. Aliás, os mitos parecem ser criações naturais do ser humano. O mito,como falamos antes, é uma forma de ver o mundo que é pautada por sentimentos. Enquanto tivermos sentimentos, teremos também mitos. O herói é um dos mitos que mais nos acompanha. Não é raro nos inspirarmos em alguém por suas ações heróicas. Acredito que o objetivo de Dias Gomes não era exatamente acabar com o mito do herói, mas abrir nossos olhos para como certos grupos a utiliza. É uma forma de nos atentar para o fato de que os mitos não tem nada de ingênuos ou neutros, eles podem ser usados para os mais variados fins, basta levarmos isso em conta e saberemos onde o herói deixa de ser objeto de inspiração para ser objeto de comércio, instrumento ideológico ou plataforma política.

Um comentário:

  1. E aí, Vinicius. Tudo bem?
    Sem problemas, pode utilizar no seu post.
    E obrigado. Não é sempre que escrevem pedindo autorização...

    Grande abraço!

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