domingo, 17 de julho de 2011

Na ponta da faca

José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo Silva.
Comentarei aqui com atraso um fato acontecido aqui perto, no estado vizinho: o assassinato de dois líderes extrativistas numa emboscada feita no assentamento em que moravam.
O casal José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo moravam num assentamento em Nova Ipixuna (Pará), numa região conhecida por conflitos agrários. Em uma palestra em Manaus, por ocasião de um evento que discutia a sustentabilidade, José revelou que já tinha sido ameaçado de morte.
Os dois defendiam a reforma agrária, principalmente nessas paragens onde o resto do Brasil ilude-se em pensar que por causa da florestas não há latifúndio. O historiador Arthur Cézar Ferreira Reis lembrava que o Amazonas enfrentou, com a política pombalina, uma tentativa de sair do extrativismo, da coleta das "drogas do sertão", para a agricultura, o latifúndio. Esse projeto deu muito mais certo no Pará, mas logo depois veio a borracha e voltamos ao extrativismo. A situação só veio a mudar na década de 1970, quando o governo tentou criar agrovilas na Amazônia e incentivou a criação de colônias aqui. A preocupação era que a terra fosse tomada por estrangeiros, por isso se incentivava a vinda de pessoas para cá, a maioria do nordeste. Mas não havia fiscalização sobre a terra. Assim, o grileiro se tornou uma das figuras mais conhecidas da região.

Darly Alves Silva e Darcy Alves Pereira: pai e filho.
Darly Alves era um sujeito que veio do Paraná atraído pelas promessas do governo. Foi para o Acre. Ali ele se instalou em uma agrovila que depois veio a fracassar. O jeito que encontrou para sobreviver foi tomar terras de alguns agricultores locais. Foi tomando terras e mais terras e na década de 1980 ele já era um grande fazendeiro. Começou a criar gado.
Chico Mendes
Você não sabe quem é Darly Alves? Ele foi o homem que mandou matar o seringueiro e líder comunitário Chico Mendes no final da década de 80. Chico Mendes era um trabalhador da floresta, um seringueiro, e queria que abandonássemos o modo de trabalho do extrativismo de então (pautado na exploração) e a economia sem planejamento a que ele era subordinado. Dizia que seus maiores inimigos eram os latifundiários que já no final dessa década começavam a desmatar a Amazônia para construir pastos.
Dorothy Mae Stang
A missionária Dorothy Stang tinha um discurso parecido, mas dirigido ás comunidades ribeirinhas do Pará. Também foi assassinada. O crime chamou a atenção da mídia nacional e internacional. A investigação levou á um grande fazendeiro local, mas ele foi libertado até onde eu sei por falta de provas.
Muitos morreram na Amazônia por conflitos agrários, contudo, algumas mortes adquirem maior visibilidade como era o caso da de Chico Mendes, um homem que tinha conquistado fama mundial, ou Dorothy Stang, que era uma clériga estrangeira. Mas o conflito por terra faz baixas na população todo dia. José Cláudio e Maria foram mais uma delas.
A polícia descarta a possibilidade de que o crime tenha sido cometido por esses motivos, mas todos desconfiam que por trás da emboscada exista algum desafeto do casal justamente por causa de suas posições.
Esse texto pode passar a impressão de que estamos demonizando os latifundiários, mas não é o caso. Existem muitos fazendeiros que possuem negócios legais, mas o que se sobressaia ainda são aqueles que abusam da falta de punidade e fiscalização. Foi á margem da lei que esses personagens sombrios floresceram, cometendo crimes contra vidas humanas e o meio ambiente.
A Amazônia não pode ser inimiga do latifúndio, mas também não pode ser refém dele. Uma maneira de acabar com a dependência exagerada, principalmente nos recursos alimentícios, pode ser incentivar a criação de plantações ou mesmo de gado, desde que elas não firam a biodiversidade local. O latifúndio pode ser uma das soluções, assim como o minifúndio, a pequena propriedade. Este último mataria dois coelhos com uma cajadada só: a dependência de gêneros alimentícios e a necessidade de uma reforma agrária. A pequena propriedade, seja ela individual ou em forma de cooperativas, pode ajudar a proteger a floresta seguindo um desenvolvimento sustentável.
Não são soluções novas, pelo contrário, muitos já a defendem há anos atrás - o economista Paul Singer, que desenvolve um trabalho sobre cooperativas e economia solidária, por exemplo. Em alguns lugares já foram até aplicadas. O que se espera é que elas sejam elevadas ao status de política pública, estendidas á toda essa região. Contudo, o projeto de Código Florestal quem vem sendo discutido no Senado parece não pensar nelas. Uma de suas medidas mais polêmicas é justamente no que tange á fiscalização: os governos estaduais decidem o que é área de preservação permanente e as multas. Ou seja, essa medida pode muito bem ser manipulada segundo os interesses de quem tem poder e já desmatou. Além disso, pequenos produtores estariam isentos da responsabilidade de criar áreas de preservação, isso sem falar que todos os produtores que levaram multas até 2008 podem ser anistiados se vincularem ao Programa de Regularização Ambiental (PRA). As coisas ficaram convenientemente vagas (mais informações aqui).
Charge de Santiago
O Código Florestal em muitos aspectos me lembra a lei dos Cercamentos criada pela rainha Elizabeth I na Inglaterra do século XV: uma reforma agrária ao contrário. Os Cercamentos expulsaram os camponeses de suas terras e as distribuíram entre os nobres. Com isso, os latifúndios floresceram na Inglaterra e as cidades incharam. Será que sabendo destas consequências nosso governo fará o mesmo? O fato do Código Florestal encontrar fiéis defensores não deixa dúvida. Contudo, os camponeses ingleses não tinham uma coisa que temos (ou achamos que temos): democracia. Impedir que isso aconteça é mais possível á nós do que foi com eles.
O Código já foi aprovado na Câmara dos Deputados, mas ainda tem de passar pelo Senado, onde algumas medidas podem ser eliminadas ou incluídas. Uma vez aprovado no Senado ele tem de passar pelo crivo da presidente Dilma Roussef que pode não aprová-la totalmente ou parcialmente. Muitas das medidas, com o pretexto de preservarem o meio ambiente e o pequeno produtor, foram incluídas como forma de conquistar o apoio de uma bancada ruralista, porém a pressão popular pode ajudar a retirar algumas. No entanto, o que menos se vêe são ataques em massa ao Código Florestal. Parece que o assunto esfriou. Assim como o assassinato de José Cláudio de Maria do Espírito Santo. Vamos deixar isso realmente passar e depois nos perguntarmos por que morrem tantas pessoas no campo ou por que a Amazônia está sendo devastada, como se não soubessemos e como não fosse nossa culpa?

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