VINTE E QUATRO HORAS
Vinicius Alves do
Amaral
A noite passava por nós. Com a
cara emburrada, devo acrescentar. Também não era pra menos: por mais de três
horas só fazíamos discutir. Contudo, todos sentados, encarando argumentos com
os olhos vidrados enquanto a cerveja esquentava. E tudo por causa de uma mosca.
Explico: Pouco antes de chegar ao
bar do fim da esquina tinha lido um ensaio do Enrique Vila-Matas[1].
Conheces? Enfim, era um ensaio sobre uma escritora para qual se escreve para ver uma mosca morrer. Como de
costume, apresentei minha última leitura com ironia e Nagle aparou meu sarcasmo
com suas colocações.
Concordava com ela por causa
disso, disso e isso. O gole afoito que dei apenas alimentou minha sanha
demolidora. Quer dizer que você escreve
para matar moscas? E eu achando esses anos todos que fumacê e inseticida
resolvia esse problema.
Ávila sentiu os raios se formarem
na retina de Nagle e dirigiu-se ao balcão onde achou alguns amigos
instantâneos. Sempre respeitoso, meu
colega de debate de mesa de bar alegou que não tinha entendido a verdadeira
essência da frase da nobre colega escritora: o que ela queria dizer é que a escrita serve para captar momentos da
vida. Questionei se a morte de uma mosca era um momento adequado.
-Justamente aí que está a questão: o que é um movimento adequado? Quem
pode dizer isso? Você? Eu? Qualquer um pode dizer. A literatura é extremamente
livre para firmar qualquer fato, por mais banal que nos pareça, como singular.
Aliás, é essa capacidade extraordinária dela que permite que reaprendemos a
prosa do mundo.
Sempre me incomodou o jeito como
Nagle fala: como se estivesse ditando, como falasse para ser escrito. Evocava
sempre Proust, Dotoievsky, Lispector, Pessoa. Pra quê esse exército? Mas para
mim a questão sempre foi outra. Para mim, singularizar o banal não bastava por
si só. Para mim, brincar com palavras não define essa estranha arte de
escrever. Para mim, literatura sempre foi autoconhecimento. Escrevemos para
sermos lidos, não para aprendermos a ler.
-Mas quem disse que não se trata de autoconhecimento também? Quando
você transforma a morte da mosca em uma tragédia você está apresentando-se a si
e aos outros, mas de forma muito mais sutil. Vamos fazer esse exercício.
Descreva a morte da mosca.
-Nagle, por que me obriga a essas coisas? Maior mico...
Enfim, depois de insistir por
longos dois minutos aceitei o desafio.
Revolvi meus neurônios por alguns instantes e saiu mais ou menos isso:
-Cansada sobre a parede, pensei qual seria a próxima parada – a lixeira
ou a pilha de pratos sujos – quando fui surpreendida pelo peso da morte.
Esmigalhada, só pude ver vagamente seu contorno: retangular e vazada por
pequenos furos...
-Viu? A sua morte da mosca é bem a sua cara. Descritiva, meio cínica...
Como você mataria a mosca, ó guru
das letras?
-Vejamos... Nagle pensou, saiu do nosso mundo e só voltou com uma
resposta.
Asas pesadas, olhos cansados.
O mundo a me esmagar.
Ao terminar seguiu um breve mais
profundo silêncio na rua – um desses momentos bizarros em que o barulho tira
uma folga – e Nagle, resoluto após seu ponto final, proferiu de forma mística: Preciso escrever isso!
Enquanto anotava no guardanapo os
trechos futuros de sua morte da mosca, perguntei qual seria o título dessa
“obra-prima”. Vinte e quatro horas, respondeu.
[1]
Trata-se do ensaio Escreve-se para olhar como morre uma mosca de Enrique
Vila-Matas sobre a escritora francesa Marguerite Duras.
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