Recentemente foi divulgado pela internet um vídeo sobre um homem que não poupa insultos á ninguém, principalmente políticos. O vídeo foi feito para o programa Documento Especial Televisão Verdade da extinta TV Manchete em 1992, mas não foi ao ar devido certamente ao linguajar do entrevistado. A equipe de repórteres estava no Largo do Machado, no centro do Rio de Janeiro, em frente ao Palácio do Catete, perguntando ás pessoas que passavam por lá o que achavam do então atual momento do Brasil.
Aconteceu de surgir esse homem durante uma das entrevistas. Se identificando como Mário Darius ou Marildo D'Areas, advogado por profissão, esse sujeito baixinho e com óculos fundo de garrafa conquista a atenção não só dos repórteres (que pensam ter encontrado um filão em tanto) como dos demais cidadãos no local. Aos poucos se forma uma platéia ao redor de Mário, entretida com suas piadas e seus palavrões. Mário parece estar bêbado, mas incrivelmente lúcido, uma vez que á medida que muda de assunto encontra inúmeros argumentos plausíveis para suas opiniões.
Aconteceu de surgir esse homem durante uma das entrevistas. Se identificando como Mário Darius ou Marildo D'Areas, advogado por profissão, esse sujeito baixinho e com óculos fundo de garrafa conquista a atenção não só dos repórteres (que pensam ter encontrado um filão em tanto) como dos demais cidadãos no local. Aos poucos se forma uma platéia ao redor de Mário, entretida com suas piadas e seus palavrões. Mário parece estar bêbado, mas incrivelmente lúcido, uma vez que á medida que muda de assunto encontra inúmeros argumentos plausíveis para suas opiniões.
Não preciso nem dizer porque o vídeo se tornou popular: os palavrões e xingamentos despertaram a atenção dos internautas. A nossa proposta nesse post é entender esse vídeo como uma fonte, ou seja, usá-lo para entender o tempo em que foi feito.
O primeiro passo é lembrar a época em que ele foi feito: o início da década de 1990. Nesse momento, a Guerra Fria tinha terminado anos antes com as reformas de Gorbachev e a queda do Muro de Berlim, enquanto nos EUA e Inglaterra, Ronald Reagan e Margaret Thatcher falavam de neoliberalismo. No Brasil, já tínhamos saído da ditadura há um tempo, chorado a morte de Tancredo e amaldiçoado as reformas de José Sarney. Nas primeiras eleições diretas (a anterior foi decidida pelo Colégio Eleitoral) do país em 30 anos, um obscuro político alagoano é eleito, graças á uma forte máquina de propaganda. A sensação que se tem é que o mundo está mudando, mas não se sabe para melhor ou pior.
Agora vejamos quem fala: Mário Darius gosta de frisar que é advogado, mostrando inclusive sua carteira da OAB. Se bêbado ou não, uma coisa é certa: ele escolheu esse dia para colocar a boca no trombone. Se não acredita na imparcialidade da equipe de repórteres como declara no final, contudo dá trela á eles, continuando a responder suas perguntas. Talvez fosse um desabafo ou um protesto.
O terceiro passo é descobrir no que se baseia Darius para tecer suas críticas. Em outras palavras, qual a sua ideologia? Nos raros momentos em que cita pessoas sem criticá-las, podemos perceber isso. Segundo Teotônio Vilela, o problema do Brasil é falta de decência. Teotônio Vilela, o "menestrel de Alagoas", um dos políticos quen lutou pela redemocratização, era conhecido por sua posição menos radical e conciliatória. Ulisses Guimarães, também citado, foi um dos maiores exemplos da luta pela democratização e pela promulgação da Constituição de 1988.
Darius compara o Brasil á uma seleção de futebol, onde tudo é escalado na última hora. O problema central do país não seria a crise porque passava desde a década de 80 (inflação provocada pelos planos políticos de Delfim Neto e pela crise do petróleo em 1974), mas algo muito maior e mais antigo. No Brasil, todo mundo que tem condições para roubar, rouba, afirma Darius que ainda declara que rouba toda vez que encontra oportunidades. Por quê? Para sobreviver, esclarece. Os políticos, no entanto, o fazem por ganância. Podemos encontrar ecos aqui com os famigerados "jeitinho" brasileiro e o "caixa dois", que são formas de corrupção praticadas por grupos sociais diferentes (o povo e a elite) e criticados há décadas nas Ciências Sociais.
Darius, sem saber, está se reportando á uma teoria que explica o Brasil através dessa sua condição de corrupção. Para essa teoria, o mal do Brasil seria o patrimonialismo, forma de dominação social onde o público e o privado se misturam e ela teria começado na colonização. Um dos primeiros a defendê-la foi o jurista e historiador gaúcho Raymundo Faoro no livro Os Donos do Poder (curiosidade: na década de1970, Faoro foi presidente da OAB). O patrimonialismo seria o principal obstáculo para o Brasil ser uma nação desenvolvida, democrática, em resumo, moderna. A solução seria separar mais essas duas esferas (público e privado), apostar na impessoalidade do serviço público e no empreendedorismo. Essa é uma interpretação, portanto, liberal.
Agora vamos aos alvos da "metralhadora giratória" de Darius. O primeiro alvo é Fernando Collor de Melo. Segundo Darius, um demagogo e um ladrão. A principal crítica vem na sua hipócrita imagem de "protetor dos descamisados" e "caçador de marajás".Passamos então ao governador do Rio de Janeiro na época, Moreira Franco. Também chamado de demagogo e de ladrão (especialmente por estar envolvido em um esquema de corrupção dentro na loteria). E chegamos ao político gaúcho Leonel Brizola que já tinha se candidatado á presidência e ao governo do estado do Rio de Janeiro, tendo sido eleito para esse último cargo duas vezes (em 1982 e depois em 1992). Darius o associa á tradição de caudilhos do Rio Grande do Sul que nos trouxe Getúlio Vargas, entendido como um dos maiores ditadores que o Brasil teve em sua visão (apesar de, ao contrário de Collor, realmente assistir o povo).
Agora vejamos quem fala: Mário Darius gosta de frisar que é advogado, mostrando inclusive sua carteira da OAB. Se bêbado ou não, uma coisa é certa: ele escolheu esse dia para colocar a boca no trombone. Se não acredita na imparcialidade da equipe de repórteres como declara no final, contudo dá trela á eles, continuando a responder suas perguntas. Talvez fosse um desabafo ou um protesto.
Teotônio Vilela |
Darius compara o Brasil á uma seleção de futebol, onde tudo é escalado na última hora. O problema central do país não seria a crise porque passava desde a década de 80 (inflação provocada pelos planos políticos de Delfim Neto e pela crise do petróleo em 1974), mas algo muito maior e mais antigo. No Brasil, todo mundo que tem condições para roubar, rouba, afirma Darius que ainda declara que rouba toda vez que encontra oportunidades. Por quê? Para sobreviver, esclarece. Os políticos, no entanto, o fazem por ganância. Podemos encontrar ecos aqui com os famigerados "jeitinho" brasileiro e o "caixa dois", que são formas de corrupção praticadas por grupos sociais diferentes (o povo e a elite) e criticados há décadas nas Ciências Sociais.
Raymundo Faoro |
Fernando Collor de Melo |
Leonel Brizola |
Acredita que a situação não mudará porque em breve Brizola será eleito presidente. Até então era improvável pensar que Collor seria substituído pelo seu vice, Itamar Franco, e Fernando Henrique Cardoso seria presidente um dia. Brizola, contudo, tinha uma popularidade muito grande. O medo de Darius é de Brizola repetir os atos de seu padrinho político, Vargas, e instaurar uma ditadura com apoio do povo, como ele fez em 1937. Darius não enxerga contudo como obstáculos para os possíveis planos de Brizola a força dos militares, que ainda ocupam cargos estratégicos, e da mídia, principalmente da Globo que tinha sido acusada de participar da fraude eleitoral de 1982 (as primeiras eleições eletrônicas do Brasil, onde a empresa responsável, Proconsult, desviava os votos nulos para o candidato Moreira Franco, mas o esquema foi revelado pelo Jornal do Brasil e a contagem de votos refeita concedendo a vitória á Brizola).
Roberto Marinho |
Quando fala em uma possível ditadura, os jornalistas perguntam se ela poderia vir dos militares, mas Darius acredita que não, uma vez que o fim da Guerra Fria esvaziou as pretensões autoritárias dos militares. O Leste Europeu já estava com a cortina de ferro sendo desconstruída, o Muro de Berlim havia caído já, a União Soviética se tornara Rússia. Contudo, adiante, o advogado lembra que os DOPS continuam funcionando, lembrando que o autoritarismo e a violência continua.
Fita vermelha: símbolo da luta contra a AIDS. |
Em certo momento da conversa, Darius toca noutro assunto polêmico: a AIDS. A doença auto-imune sexualmente transmissível que tinha surgido na África e rapidamente migrado para a maior parte do mundo era um perigo real e assustador, mas que ainda se sabia muito pouco. Darius faz uma piada com as águias do Palácio do Catete e lembra que a AIDS pode ser transmitida muito facilmente. Hoje, felizmente, temos maior conhecimento sobre essa doença, embora a ciência ainda não tenha achado a cura. Daí em diante ele faz uma comparação entre o desejo do brasileiro sempre levar vantagem e uma prática sexual feita nas prisões, para algeria dos ouvintes ao seu redor.
Antes de terminar sua "entrevista", embrenhando-se no meio da multidão, Mário dá sua última alfinetada, essa dirigida para os repórteres. Uma crítica, na certa, mais ampla, dirigida ás empresas de comunicações do país como um tudo. Ele as chama de hipócritas, ataca sua imparcialidade e seriedade, uma vez que tudo que ele disse não será colocado no ar (e realmente não foi). O jornalismo-verdade só passa a verdade que as empresas acham convenientes.
O vídeo é engraçado sim, pelo jeito excêntrico e desbocado de Darius, mas ele também é sério. Ele fala sobre uma época em que vivemos e que não está assim tão longe de nós. Se pensarmos bem, foi "ainda ontem". E parece que a situação não mudou muito: a crise econômica foi tirada de cena com o Plano Real, mas a corrupção continua aí mostrando suas caras. Mensalão, escandâlo no Senado com Calheiros e Sarney, mensalinho do Distrito Federal, tucanoduto, esquema no Ministério dos Transportes; a corrupção está aí, agora mais divulgada. Será que vamos continuar sendo hipócritas e fingir que não temos culpa nisso tudo ao eleger esses caras ou ao não fazer nada para pressioná-los a mudarem de atitude?
otimo texto!
ResponderExcluirGostei da sua análise!
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