sábado, 27 de abril de 2013

Outrem

O pessoal.
Foto: Maurílio Sayão.

Ninguém se faz sozinho.
A cada dia comprovo mais a veracidade dessa máxima.
Nós somos seres sociais, por mais independente que tentemos ser. Sempre haverá alguém a mais, sempre haverá o Outro. Claro, pra muitos essa constatação é um tanto preocupante: ter se relacionar com os outros é sempre frustrante, pois eles não correspondem ao que esperamos ou queremos deles. Essa é a maior força do Outro. Por ser diferente e a um só tempo igual, o Outro nos enriquece.
Hoje acredito que ter bons interlocutores vale tanto como ter bons valores. Nossa identidade se faz no diálogo com as demais identidades. Fica nítido o motivo de nossas ações, somos levados a reafirmar ou rever nossas opiniões.
Para mim, esse blog e as redes sociais, independente de todas as dificuldades e besteiras que ambos me proporcionam, tem o seu lado enriquecedor que é justamente esse de estabelecer diálogos e pontes. Só por conta dele insisto em ter ainda um blog e um perfil em redes sociais.

Quase nirvana

Foto: Keyce Jhones.

Quando somos cínicos demais
é preciso redescobrir as pequenas coisas.

A folha seca que toca a superfície da água
traz lições de leveza.

Já o apressado beija-flor
se alimenta da beleza
lembrando que se pode encontrar
néctar em cada esquina.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Espelho, espelho meu


O espelho sempre foi um lugar para praticar meu narcisismo diário. Ás vezes também é um local para fortes emoções: quando estou pra baixo basta olhá-lo que dou algumas risadas ou então chorou mais...
Seja como for, fortes emoções sempre me aguardam. Como ontem, quando descobri o primeiro fio de cabelo branco. O primeiro na verdade veio acompanhado do segundo e do terceiro, como se fosse promoção de supermercado.
Fiquei pasmo. Sempre me imaginei com o cabelo branco, mas não agora. Talvez daqui uns dez anos, mas agora? Eu sou muito novo, ainda tenho vinte e poucos anos. Na verdade, isso de ser novo não cola, já que tenho amigos com a mesma idade que estão quase grisalhos.
Eu não tenho problemas com envelhecer, só não quero envelhecer agora!
Os médicos sempre falaram que eu tenho um metabolismo muito rápido. Na quarta série eu me senti um pioneiro ao ter pêlo no suvaco antes de todo mundo. Agora me sinto um passo mais perto da artrite e do exame de próstata.
Quando se é criança, tudo o que se quer é ser mais velho, como se isso fosse resolver todos os problemas. Quando se é velho, ser criança não parece tão ruim. Pelo contrário, se torna quase um sonho. Eu me sinto mais tranquilo ao saber que não sou o único com essa neurose com a idade - meio mundo a tem e nega veemente. Se maquiar não é esconder marcas do tempo? Usar roupas da moda não é negar que está desatualizado?
Quer saber? Que se dane! Envelhecer é natural. A morte faz parte da vida. Nunca vi ninguém nascer pra ser imortal - a não ser o highlander. Não vou esquentar com algo que não posso evitar. Eu tenho é que me adaptar com o que tenho a mão. Posso ter um dia ou vinte anos pela frente, o que importa é utilizar bem minha carga horária. Ah, se eu pudesse fazer hora extra...
Que seja, esses cabelos não estragarão minha semana. Foi legal ter pensado sobre a vida e coisa e tal, espelho. Muito obrigado! Agora, onde está a tesoura?

sábado, 20 de abril de 2013

Botecosfera

Ari era um cara legal. Todos achavam isso dele. Até o dia em que não pagou a conta. Aí foi mandado para o mais baixo ponto da lista de facínoras do bar.

Tiziu já dava nos nervos: chegava zombando de todos e quanto mais copos virava, mais insuportável se tornava. Bacalhau, o dono, dissolvia o clima tenso apenas batendo o porrete de madeira no balcão. Na mesma hora o homem se transformava num gentleman.

Lurdinha, ah, Lurdinha... Beleza não era um de seus atributos, tampouco a simpatia. Mas ela tinha um sorriso todo seu, hipnotizante. Não sei o que via naqueles dentes acavalados. Um dia fiz ela jurar. Lurdinha mesmo que você mude de vida, encontre um ricaço e fique cheia da grana, me prometa uma coisa: nunca vá ao dentista!

Cidade-esfinge


Estava eu sentado num dos milhares de banquinhos que circundam o Largo São Sebastião quando decidi por absoluta falta do que fazer admirar o chão. Sim, o calçamento da Praça é feito de pedras pretas e brancas, simulando as ondas do mar - lembrar muito o calçadão de Copacabana.
Então percebo que não era o único leso contemplando aquele tabuleiro. Do cordão de mangueiras surgiram duas figuras - talvez já estivessem lá e minha miopia não me avisou  - e andaram calmamente até o centro da praça. Lá pararam. O objeto de admiração era outro agora: o monumento de abertura ao portos.
Me chamou a atenção esta dupla pela perfeita união de contrastes que formava: um era mais alto, o outro baixinho; um era negro, o outro brancão; esse era velho, aquele jovem...
Arriscaria dizer que o rapaz era haitiano e o senhor era estrangeiro - possivelmente italiano ou francês. E digo mais: esse velhinho com certeza era um padre. Não precisaria ser um Sherlock Holmes para descobrir: o colarinho denunciou.
Ainda que o sacerdote não fosse de Manaus tenho a impressão de que estava em Manaus já há um tempo, uma vez que era o guia do jovem haitiano. Ele falava do calçamento, do chafariz, as estátuas. Apontava para a nau que representava o continente africano. O rapaz só ouvia. Não disse uma palavra. Seus olhos dissecavam o monumento e a praça acompanhados pela voz cadente do vigário (a essa altura já tinha quase certeza que era vigário... ou então monsenhor?). Espremia os olhos até o bagaço. Um óculos não faria mal, com certeza.
Ousei ir pouco mais longe na minha intromissão e imaginar o que aconteceria daqui há alguns meses: talvez esse mesmo rapaz volte aqui e apresente ao seu primo que acabou de vir do Haiti o calçadão ondulado e o monumento apinhado de sinais. Acreditando que depois disso seu primo poderá ler a cidade sem ter que espremer a visão. O idioma não será mais desconhecido, nem o ambiente tão alienígena. As surpresas, essas sim continuarão. Nem os mais experientes viventes da cidade estão isentos de uma nova lição de Manaus.

sábado, 13 de abril de 2013

Queria ser Peter Sellers


Eu era um garoto que passou a morar perto de uma locadora. Uma não, duas! A minha preferida era aquela que tinha filmes antigos em DVD. Para mim foi a chance de descobrir as raízes do cinema - imagine, tinha 15 anos e o cinema para mim eram apenas filmes da sessão da tarde ou então um ou outro blockbuster que assisti na telona.
Pois bem. Um deles chamou minha atenção pelo nome: A Pantera Cor de Rosa (1964). Esperava que fosse algo parecido com Mary Poppins (1964), com a protagonista dividindo a cena com personagens de carne e osso. Na realidade, a pantera do título era um diamante e o protagonista, o homem que pretende roubá-lo. Mas é óbvio que quem rouba a cena é o atrapalhado detetive Closeau vivido por Peter Sellers.
Mas o que motivou um menino magrelo e cabeludo a gostar desse comediante e ator britânico do século passado? A fórmula do humor de cara séria! Closeau podia tropeçar ou quebrar alguma maçaneta, mas fingia que nada havia acontecido, continuava impassível. Raras vezes sorria. Não era um palhaço convencional e isso me impressionou.
Em muitos momentos, como em Muito Além do Jardim (1980), o humor de Sellers chega a produzir em nós algo similar a uma vergonha alheia por deixar seus interlocutores tão desconfortáveis. Todos na expectativa de que uma piada acontecerá e de repente, ela é negada ou trocada por uma situação incômoda. Humor não é isso? A quebra da expectativa?
Sellers não zomba dos outros, pelo contrário, zomba de si mesmo e é isso que deixa os demais em maus lençóis. O palhaço desastrado ou sem noção de contexto é o mestre na arte do anti-clímax. Suas atitudes estabanadas ou desorientadas ridicularizam a si próprio. Um sacrifício pelo humor, imagino.

E é interessante percebermos que muitos humoristas atuais são dessa escola: cito aqui o caso de Robin Williams e de Sascha Baron Cohen, que já admitiu publicamente ser fã do "clown" de Sellers. Mas logo descobri que Sellers não tinha patenteado essa metodologia, mas sim Buster Keaton (1895-1966), uma das feras do cinema mudo. Keaton era tão engraçado quanto Charles Chaplin (1889-1977), mas não conseguiu sobreviver á novidade do cinema falado. Certamente ajudou a subverter a imagem do palhaço sorridente com sua "grande face de pedra", aberta á múltiplas interpretações pelos espectadores.
Mas talvez a história não pare por aí: é possível que Max Linder (1883-1925), ator francês, seja o ancestral mais antigo dessa hierarquia do humor ao construir um personagem próprio, uma espécie de alter ego, que figuraria nos seus muitos filmes. Seu protagonista também se chamava Max e apesar de parecer um almofadinha mulherengo só fazia mancada, mas sempre as encarava como algo natural. É possível que na sua cabeça, nem tivesse acontecido, o importante era passar para a próxima aventura, no caso, a próxima donzela disponível.

De qualquer modo, aquele DVD no canto da locadora me ajudou muito. Não foi só Peter Sellers que conheci naquela tarde, mas todo esse bando de pessoas. Foi assim que aprendi que o humor tem suas linhagens. O que para nós parece novidade, não passa de algo reeditado. Isso não desmerece o valor do comediante. O verdadeiro humorista segue regras, ele sabe bem a quem ele deseja se afiliar, afinal todo mundo tem seus ídolos. Mas ele sabe o ponto exato em que deve derrubar as catedrais e se libertar das correntes. O que dá a medida da sua originalidade é como o seu talento traduz a tradição do humor a que ele pertence.
Não sou especialista em humor, mas creio que as coisas sejam assim. Quanto á Peter Sellers, sou eternamente grato por ter me ensinado essa lição. Eu confesso: quis ser Peter Sellers um dia. Mas me informei sobre sua vida e encarei alguns dilemas próximos dos que ele enfrentou. Coisas da adolescência. Hoje bem sei que o melhor é sempre conservar a sua autonomia. Ainda assim admiro o muito pelo talento que tinha em fazer as pessoas rirem sutilmente. Quisera eu ter esse dom.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

O exame


GAROTO DIZ VIAJAR NO TEMPO. Essa manchete chamou o Dr. Calamar para a cidade. Ele quer analisar o caso de Dan. Alguns minutos á sós com o garoto é tudo o que pediu ao diretor do sanatório. Dan se revelou um garoto frágil. Seu corpo afundava-se na cama como se estivesse em uma banheira. Parece um caso de anemia grave. Vomita tudo o que damos, respondeu a enfermeira. O incrível é que nunca tem fome, concluiu o diretor.
Depois de se apresentar e sentar ao lado do paciente, o bom doutor, sem retirar os óculos escuros, começa a perguntar coisas. Coisas estranhas. Suas alucinações falam de bombas. Que tipo de bomba? Nucleares? Chegou a visitar o passado? Pra onde foi, mais especificamente.
E terminou o exame com a pergunta com que se abre geralmente a conversa: como você faz pra viajar no tempo? Muito estranho. Dan percebeu algo de sinistro no seu olhar escondido pelas lentes. Médicos não usam luvas negras como essa.
-Eu simplesmente faço.
Essa foi a resposta seca e com uma pitada de deboche no final que o doutor obteve. O paciente já sabia que não era um exame, mas um verdadeiro interrogatório. Calamar pegou sua pasta e retirou uma foto de um objeto. Objeto familiar para Dan: quando foi preso estava portando-o. Lembra um pente.
O que você faz com isso? É o que usa para ir aonde quer? Como isso funciona?
O doutor saiu. Não foi preciso gritar ou carregar nas palavras para expulsá-lo. Simplesmente calou-se.

Aviso aos navegantes

Sim, o blog está mudando. Para o quê, não sei. Só sei que cansei do antigo visual. Cansei de receber reclamações de que o layout estava muito sujo (PÔ, a proposta era de ser um pé-sujo! Isso se chama coerência!), mas como bom teimoso relutei em mudar. Decidi dar uma repaginada nele por puro acaso. Foi um surto e na hora quebrei as paredes do bar. Penso que o modo de botequim é muito interessante, mas faltava a ele maior periodicidade e diálogo com os leitores. Mea culpa. Bem, não totalmente, mas vá lá.
Enfim, essa bagaça vai mudar, mas planejo continuar com a proposta de reunir assuntos diversificados e uma escrita informal.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Mentira tem perna curta, mas corre que é uma beleza

APOLOGIA DA INVERDADE
por Fabiano Mourão

Não entendo porque tantas pessoas condenam a mentira. É como criticar o oxigênio por ser um gás inodoro. Nós respiramos mentiras todos os dias. Andamos sobre mentiras, bebemos mentiras e sonhamos com mentiras. 
Não quero com isso dizer que toda inverdade é aceitável. Acredito que podemos classificar a massa de mentiras em dois tipos: as boas e as más. A mentira boa é aquela que não magoa, aquela que encobre para não ferir quem quer que seja. A mentira má já é diferente: sua intenção é salvar seu usuário ou então ajudá-lo a custa dos outros.
O pai que mente pro filho dizendo que o cachorrinho morto na verdade está hibernando está pensando no seu filho, em poupá-lo da dor da morte. Já o vigarista que mente sobre o "negoção" que está arrumando pro amigo enquanto encampa o seu suado dinheiro está pensando em nadar em Miami através da ingenuidade dos outros.
Percebeu a diferença?
Alguém me perguntou uma vez: por que mentir? Meu amigo, é simples: porque a verdade dói. Tá certo, ela liberta em algumas horas, mas na maior parte do tempo ela incomoda e preocupa. Já pensou admitir que não existe vida após a morte, que reconfortante seria? Tem gente, amigos meus (não revelo o nome nem sob tortura!), que sabem que a mulher não é lá esse anjinho e mesmo assim continuam teimando em vê-las como santas. Como diz mesmo o ditado? "O que os olhos não vêem, o coração não sente". É por aí mesmo...
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Fabiano Mourão é PhD em contos da carochinha, laureado com o VII Prêmio Pinóquio pela Associação de Munchausen e consultor do governo para mentiras oficiais e afins.