Eu era um garoto que passou a morar perto de uma locadora. Uma não, duas! A minha preferida era aquela que tinha filmes antigos em DVD. Para mim foi a chance de descobrir as raízes do cinema - imagine, tinha 15 anos e o cinema para mim eram apenas filmes da sessão da tarde ou então um ou outro blockbuster que assisti na telona.
Pois bem. Um deles chamou minha atenção pelo nome: A Pantera Cor de Rosa (1964). Esperava que fosse algo parecido com Mary Poppins (1964), com a protagonista dividindo a cena com personagens de carne e osso. Na realidade, a pantera do título era um diamante e o protagonista, o homem que pretende roubá-lo. Mas é óbvio que quem rouba a cena é o atrapalhado detetive Closeau vivido por Peter Sellers.
Mas o que motivou um menino magrelo e cabeludo a gostar desse comediante e ator britânico do século passado? A fórmula do humor de cara séria! Closeau podia tropeçar ou quebrar alguma maçaneta, mas fingia que nada havia acontecido, continuava impassível. Raras vezes sorria. Não era um palhaço convencional e isso me impressionou.
Em muitos momentos, como em Muito Além do Jardim (1980), o humor de Sellers chega a produzir em nós algo similar a uma vergonha alheia por deixar seus interlocutores tão desconfortáveis. Todos na expectativa de que uma piada acontecerá e de repente, ela é negada ou trocada por uma situação incômoda. Humor não é isso? A quebra da expectativa?
Sellers não zomba dos outros, pelo contrário, zomba de si mesmo e é isso que deixa os demais em maus lençóis. O palhaço desastrado ou sem noção de contexto é o mestre na arte do anti-clímax. Suas atitudes estabanadas ou desorientadas ridicularizam a si próprio. Um sacrifício pelo humor, imagino.
E é interessante percebermos que muitos humoristas atuais são dessa escola: cito aqui o caso de Robin Williams e de Sascha Baron Cohen, que já admitiu publicamente ser fã do "clown" de Sellers. Mas logo descobri que Sellers não tinha patenteado essa metodologia, mas sim Buster Keaton (1895-1966), uma das feras do cinema mudo. Keaton era tão engraçado quanto Charles Chaplin (1889-1977), mas não conseguiu sobreviver á novidade do cinema falado. Certamente ajudou a subverter a imagem do palhaço sorridente com sua "grande face de pedra", aberta á múltiplas interpretações pelos espectadores.
Mas talvez a história não pare por aí: é possível que Max Linder (1883-1925), ator francês, seja o ancestral mais antigo dessa hierarquia do humor ao construir um personagem próprio, uma espécie de alter ego, que figuraria nos seus muitos filmes. Seu protagonista também se chamava Max e apesar de parecer um almofadinha mulherengo só fazia mancada, mas sempre as encarava como algo natural. É possível que na sua cabeça, nem tivesse acontecido, o importante era passar para a próxima aventura, no caso, a próxima donzela disponível.
De qualquer modo, aquele DVD no canto da locadora me ajudou muito. Não foi só Peter Sellers que conheci naquela tarde, mas todo esse bando de pessoas. Foi assim que aprendi que o humor tem suas linhagens. O que para nós parece novidade, não passa de algo reeditado. Isso não desmerece o valor do comediante. O verdadeiro humorista segue regras, ele sabe bem a quem ele deseja se afiliar, afinal todo mundo tem seus ídolos. Mas ele sabe o ponto exato em que deve derrubar as catedrais e se libertar das correntes. O que dá a medida da sua originalidade é como o seu talento traduz a tradição do humor a que ele pertence.
Não sou especialista em humor, mas creio que as coisas sejam assim. Quanto á Peter Sellers, sou eternamente grato por ter me ensinado essa lição. Eu confesso: quis ser Peter Sellers um dia. Mas me informei sobre sua vida e encarei alguns dilemas próximos dos que ele enfrentou. Coisas da adolescência. Hoje bem sei que o melhor é sempre conservar a sua autonomia. Ainda assim admiro o muito pelo talento que tinha em fazer as pessoas rirem sutilmente. Quisera eu ter esse dom.