BASTOS, Élide Rugai e PINTO, Renan Freitas (orgs.). Vozes da Amazônia: Investigação sobre o
pensamento social brasileiro.
Vinicius
Alves do Amaral
Mestrando em História
Social pela Universidade Federal do Amazonas.
Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas,
2007. 452p.
Élide
Rugai Bastos, reconhecida estudiosa da Ciência Política, salienta em seu
prefácio ao livro Vozes da Amazônia o
peso de certos momentos históricos para o pensamento social brasileiro.
Remete-se á 1930 e 1950, períodos em que o país desenvolve e, através de
figuras como Gilberto Freyre ou Antônio Cândido, reflete sobre seu passado,
presente e futuro. Mas a Amazônia também tem suas décadas-chave, como 1970 e
1980.
É
durante esse período que as discussões sobre o desenvolvimento da Amazônia, á
luz dos primeiros efeitos da Zona Franca e da pressão autoritária do regime
militar, adquirem um sabor a mais com a consolidação do ambiente universitário
na região. É durante esse período que surgem, após a crítica ao pensamento
etnocêntrico do qual os estudos amazônicos sempre foram grandes devedores, as
primeiras propostas de uma ciência eminentemente amazônica. É durante esse
período, ainda, que Renan Freitas Pinto, doutor em Sociologia pela USP e
atualmente professor aposentado do Departamento de Antropologia da Universidade
Federal do Amazonas (UFAM), e Marilene Corrêa Silva Freitas, doutora em
Ciências Sociais pela UNICAMP e professora do Departamento de Sociologia da
UFAM, iniciam suas carreiras.
Cito-os
porque além de figurarem no livro em questão são os maiores representantes
desse esforço de constituição de um espaço acadêmico no Amazonas. Basta lembrar
que o curso de Antropologia e os programas de pós-graduação em Sociedade e
Cultura na Amazônia e Natureza e Cultura foram criados com sua ajuda. Muitos
dos autores de Vozes da Amazônia são
oriundos destes programas, representando bem a interdisciplinaridade e o
comprometimento com os rumos da Amazônia hoje presentes em tais estudos.
O
projeto Vozes da Amazônia, nascido
inicialmente como um seminário organizado pela UFAM em 1996, tem o objetivo de
contribuir para o estudo do pensamento social brasileiro com as reflexões
produzidas á nível regional tanto ontem como hoje. Seguindo essa proposta
podemos encontrar artigos que buscam refletir sobre certos temas presentes na
tradição de pensamento local ou então oferecer uma releitura de autores
consagrados.
Na
primeira alternativa, os textos de Ricardo Ossame e Luiz Fernando Souza parecem
ser emblemáticos por se deterem em temas tais como as cidades amazônicas ou
então o discurso sobre a natureza, respectivamente. Ossame se ocupa dos relatos
de alguns viajantes do século XIX, que também aparecem de forma tangencial no
estudo de Souza. No entanto, o artigo do primeiro parece muito mais descritivo
que reflexivo propriamente. Souza problematiza as diferentes visões da natureza
amazônica (construídas e reconstruídas há séculos), encontrando um ponto
essencial: a dominação implícita.
Não
há como não enxergar uma aproximação com a grande obra do historiador Arthur
Cézar Ferreira Reis, A Amazônia e a
Cobiça Internacional (1965). Por apresentar um longo histórico de ameaças
estrangeiras á região, o livro encontrou acolhida nos mais diferentes meios e
sua influência pode ser encontrada tanto no artigo de Souza como no de Luiz
Carvalho. No entanto, é necessário não perder de vista que Souza analisa, com a
ajuda de Foucault dentre outros, os discursos e que contempla também em sua
crítica o projeto colonizador português, que para Reis representava um esforço
civilizatório digno.
Há
aqueles também que se comprometem a construir conteúdos programáticos,
reportando-se á discussão epistemológica sobre uma ciência amazônica. É o caso
de Luiz Carvalho que defende que há “(...) uma inconsistência epistemológica
dos modelos teóricos disponíveis para formular o conhecimento e a compreensão
ambiental amazônica e o da inadequabilidade programática de seus modelos
desenvolvimentistas/ subdesenvolvimentistas” (p. 69). Após detida discussão
filosófica, Carvalho procura fundar um novo projeto mental e social para a
Amazônia que supere a divisão criada pela ciência moderna entre natureza e
sociedade.
Quanto
aos demais textos, há aqueles que empreendem releituras de clássicos ao
analisarem um tema em específico de suas obras. Encontramos no artigo de
Heloísa Lara Campos uma amostra desse esforço, quando a pesquisadora elenca
como objeto de estudo as representações femininas dentro da obra do escritor
paraense Dalcídio Jurandir. Extremamente pertinente o nexo que a autora
estabelece entre ideias feministas e a experiência do viver amazônico que
podiam estar presentes na criação literária de Jurandir.
Ainda
elegendo a literatura como foco, Marco Aurélio Paiva Coelho realiza uma
reflexão sobre os limites do modernismo paulista propagado pela Semana de Arte
Moderna de 1922 ao abordar a carreira artística e algumas obras do também
escritor paraense Abguar Bastos. O autor faz uma desconstrução desse artista
geralmente considerado um dos porta-vozes do modernismo no Norte, mas no sentido de apresentar a sua
proposta diferenciada de modernismo. Assim sendo, o herói Bepe de seu livro
representaria o oposto do herói sem caráter criado por Mário de Andrade, não
por se filiar a um ideal romântico, mas por se aproximar do mito, uma das
expressões amazônicas mais autênticas para Bastos. Mas o mito não está
desligado da História, como percebemos nas maquinações feitas por um papagaio
sobre um fonógrafo (p.364).
Lúcia
Ferreira Puga e Odenei Ribeiro nos apresentam pioneiros raramente estudados no
pensamento social na Amazônia. Estamos falando de André Araújo e Leandro
Tocantins, respectivamente. Minuciosa análise faz Puga demonstrando a visão
original de Araújo, uma mescla inesperada entre a questão social da Igreja
Católica e a Escola de Sociologia de Chicago, e como o conceito de comunidade é
central nela. Para ele, a modernidade destruiria os laços da comunidade,
processo esse que pode ser evitado por duas entidades através de suas obras assistencialistas:
o Estado e a Igreja Católica. Já Tocantins, como bem mostra Ribeiro, propõe uma
modernização que não desconsidere alguns traços essenciais da cultura amazônica,
tal como os saberes tradicionais ou a miscigenação. É previsível a conclusão a que chega Ribeiro
de que a obra de Tocantins “(...) cumpre no extremo Norte papel semelhante a
que a de Gilberto Freyre cumpriu no cenário nacional” (p. 337).
Júlio
Cesar Schweikckardt aponta a importância do sanitarista Alfredo da Matta como
pensador amazônico, até então subsumido dentro da discussão regional. Sua
presença no panteão de intelectuais locais se deve ás suas considerações
decorrentes de sua percepção da saúde amazônica. Para o médico, como pregava o
discurso sanitarista da virada do século XIX, os costumes garantiam a
permanência das doenças sendo, portanto, necessário uma reeducação, organizada
pelo Estado, com vistas á “civilizar” os povos amazônicos.
Importantes
releituras empreendem Renan Freitas Pinto e Selda Vale Costa a partir de fontes
como a imprensa e a correspondência. Pinto não discute as características
intrínsecas de suas fontes – tais como os aspectos da escrita condicionados
pelo suporte impresso diário – enquanto Costa se detém em uma breve discussão
sobre a validade do estudo das cartas e algumas de suas vicissitudes.
Renan
F. Pinto analisa os artigos de jornais de Djalma Batista como uma extensão das
reflexões presentes em sua obra magna, Complexo
da Amazônia (1977). Seu recorte temporal abrange a década de 1970, mas não
considera os artigos como parte do processo criativo do livro, mas sim como um
apêndice das questões já analisadas pelo pensador. É importante lembrar também
que seu texto é introdutório, elencando temas para análises posteriores.
Selda
Vale Costa, por sua vez, estuda a correspondência do etnólogo Nunes Pereira com
quatro intelectuais locais: o historiador Arthur Cézar Ferreira Reis, o
antropólogo Curt Nimuendaju, o médico Djalma Batista e o diretor do Museu
Goeldi Machado Coelho. O objetivo é claro: entender a rede de sociabilidades
mantidas por estes intelectuais. O acervo de Nunes Pereira surpreenderia pela
riqueza de dados contidos em algumas páginas, guardadas por ele e organizadas
por seu secretário. “As epístolas, em síntese, revelam linguagens regionais,
preocupações políticas com a região e querelas familiares. Cultura, ciência,
política e afeto, eis os ingredientes mais comuns das missivas” (p. 280).
A
pesquisadora Giselle Martins Venâncio, no livro Escrita de Si, Escrita da
História (organizado por Ângela de Castro Gomes), chama a atenção para o papel
das representações nas cartas. Ao analisar a amizade epistolar entre Monteiro
Lobato e Oliveira Vianna desvincula-se das tradicionais representações
imputadas a tais intelectuais e nos apresenta novas interpretações deles
através de suas missivas (VENANCIO, 2004, p. 118). Foucault em estudo
antológico situaria este precioso status das correspondências enquanto parte do
contínuo exercício pessoal construção de si. Afinal, “é algo mais que um
adestramento de si próprio pela escrita, por intermédio dos conselhos e
opiniões que se dão ao outro: ela constitui uma certa maneira de cada um se
manifestar a si próprio e aos outros” (FOUCAULT, 1992, p. 150).
A
antropóloga Selda V. Costa enxerga essa dimensão representativa na troca de
missivas: podemos ver a gradação de amizade através das expressões e da grafia,
mas mais interessante ainda é ver os diferentes tipos de amizade que Pereira
mantém com os referidos intelectuais. Somos apresentados á um Arthur Reis
desiludido com Manaus e que oscila entre o tratamento reverencial e a crítica
jocosa com seu interlocutor. Djalma Batista se coloca como aprendiz, mas incita
seu mestre todo tempo a produzir mais. Sua fala é um tanto institucional,
talvez por no momento estar presidindo a Academia Amazonense de Letras da qual
Nunes ajudou a fundar. Nimuendaju possui um relacionamento mais formal com o
etnólogo, ao contrário de Machado Coelho que o considera um grande irmão e
ressente-se das poucas visitas do amigo.
Mais
significativa é a representação que Pereira constrói de si. Aqui e acolá assume
o perfil de libertino e pornográfico, mas por vezes não hesita em abusar da
autoridade que a idade e os centros culturais lhe conferiam. Estas representações
são de fundamental importância, pois nelas é perceptível a tensão social e
cultural estabelecida entre seus autores. O diálogo, a troca de informações,
não discrimina as rivalidades e conflitos que estes homens possuíam. Apesar de
ser marcante, mais em uns que outros, o estigma de ser um intelectual amazônico
persiste – como é o caso de Coelho que se ressente do amigo, talvez por ter
fincado raízes na capital federal, ou então de Reis que recusa qualquer
tentativa de ação cultural em sua terra natal.
As
considerações finais de Selda Costa são exemplares por não esgotarem as
interpretações sobre o provincianismo intelectual amazônico: “Talvez se trate
mais de visualizar a província como espaço cultural e evidenciar que o
insulamento, o sentir-se só, abandonados pelo governo federal, pelo Brasil,
essa temática-lamento constante, talvez seja mais uma armadilha (...)” (p. 306)
ou seja, será que o “atraso cultural” da Amazonas não passa de um discurso para
reduzir questões próprias do campo artístico e exigir uma intervenção estatal
no sentido de subsidiar estes artistas, por exemplo? E esse isolamento talvez
seja a força motriz do pensamento e da arte amazônica, sua fonte maior de
vigor. Afinal, “esse ilhamento, real ou idealizado, cria as condições para uma
migração para dentro de si mesmos, certo ensimesmamento, que cria e recria,
elabora e inventa uma ideologia da amazonidade” (p. 306).
Em
suma, como afirmamos no início, há uma proposta que subjaz á todos estes
artigos tão desiguais entre si (seja no estilo de escrita ou na densidade
teórica e metodológica) que é a crítica á modernidade que se impunha já nos
anos 70 e 80 e que hoje, ao invés de arrefecer, agudizou-se. A grande riqueza
deste livro é não focar apenas no ataque ao projeto modernizador implantado,
mas sugerir novos caminhos através inclusive da tradição de pensamento local. A
releitura de autores consagrados também aponta uma dimensão necessária do
diálogo, muito diferente da atitude que permeou em outros tempos de
desqualificação de suas obras através de taxações como “reacionário” ou
“conservador”. Seja como for, Vozes da
Amazônia é um importante documento sobre o estado atual do pensamento
social amazônico.
Referências:
VENANCIO, Giselle Martins. Cartas de Lobato a Vianna: uma memória epistolar
silenciada. In: GOMES, Angela de Castro (org.). Escrita de Si, Escrita da
História. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2004.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Passagens,
1992.